UTILIZAÇÃO SUSTENTÁVEL DA AREIA DESCARTADA DE FUNDIÇÃO (ADF) NA CONSTRUÇÃO CIVIL: PERSPECTIVAS AMBIENTAIS, RISCOS À SAÚDE E MARCO REGULATÓRIO NO BRASIL

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UTILIZAÇÃO SUSTENTÁVEL DA AREIA DESCARTADA DE FUNDIÇÃO (ADF) NA CONSTRUÇÃO CIVIL: PERSPECTIVAS AMBIENTAIS, RISCOS À SAÚDE E MARCO REGULATÓRIO NO BRASIL

Raquel Luísa Pereira Carnin

1. INTRODUÇÃO           

A indústria de fundição é a fonte de Areia Descartada de Fundição (ADF), um resíduo gerado em grandes quantidades no Brasil. Historicamente, este material tem sido destinado a aterros, o que representa não apenas uma questão de gestão de resíduos, mas também uma oportunidade perdida de reciclagem. Com o avanço das tecnologias de reciclagem e uma maior consciência ambiental, a ADF começa a ser vista como um recurso potencial para aplicações em construção civil, especialmente em atividades como material para infraestrutura e recobrimento e assentamento de tubos para saneamento. Este trabalho discute os desafios e as oportunidades associadas ao uso da ADF, com um foco particular nas regulamentações brasileiras que orientam sua aplicação segura.

A Lei Federal nº 12.305, aprovada pelo Governo Federal em 2010, estabelece a Política Nacional de Resíduos Sólidos, incentivando a regularização de áreas para disposição de resíduos e priorizando a redução, o uso e a reciclagem de resíduos. Este marco legal não apenas promove a gestão eficiente dos resíduos, mas também enfatiza a necessidade de integrar práticas de economia circular no setor industrial. O artigo 7º, inciso XIV, da lei, em particular, incentiva o desenvolvimento de sistemas de gestão ambiental e empresarial voltados para a melhoria dos processos produtivos e ao aproveitamento de resíduos sólidos.

A incorporação de práticas de economia circular, como a utilização da ADF em construção civil, apresenta uma estratégia viável para minimizar o impacto ambiental da indústria de fundição. A utilização não só reduz a demanda por novos recursos, mas também diminui a quantidade de resíduos enviados a aterros, alinhando os processos produtivos com objetivos de sustentabilidade mais amplos. Assim, a implementação de tais práticas é crucial para transformar os desafios ambientais em oportunidades econômicas e de inovação, beneficiando tanto o meio ambiente quanto a economia.

Adicionalmente, a utilização da ADF na construção civil pode contribuir significativamente para a obtenção de créditos de carbono, uma vez que essa prática reduz as emissões de gases de efeito estufa associadas à produção de novos materiais e ao transporte de resíduos para aterros distantes. A redução dessas emissões, quantificada em projetos de construção que empregam ADF, pode ser transformada em créditos comercializáveis no mercado de carbono, proporcionando um incentivo financeiro adicional para empresas que adotam práticas de reciclagem e reutilização. Esse mecanismo não só promove a economia circular como também apoia o cumprimento de metas nacionais e globais de redução de carbono, reforçando o compromisso com o desenvolvimento sustentável.

    1. Avaliação de Riscos Ambientais e à Saúde

A utilização da ADF na construção civil exige uma compreensão clara dos potenciais riscos à saúde e ao meio ambiente. Os principais componentes da ADF incluem sílica, argila e resíduos de carvão, cujas interações químicas e físicas no ambiente construído podem apresentar riscos. Avaliações de risco detalhadas são necessárias para determinar a segurança da ADF, especialmente em relação à lixiviação de metais pesados e a emissão de partículas finas que podem afetar a qualidade do ar e a saúde pública.

 

1) Marco Regulatório no Brasil

No Brasil, a utilização da ADF é regida por um conjunto de normas e leis federais, estaduais e municipais que visam garantir que sua aplicação não represente riscos adicionais. Dentre as principais normativas estão:

  • Decisão de Diretoria CETESB 152/2007: Define critérios para o uso da ADF em artefatos de concreto sem função estrutural e concreto asfáltico no estado de São Paulo;
  • Resoluções Consema/SC 011/2008 e 026/2013: Estabelecem diretrizes para o uso da ADF em Santa Catarina;
  • NBR 15702/2009: Fornece diretrizes técnicas para a aplicação de ADF em asfalto e em aterros sanitários;
  • Leis estaduais e municipais: A partir de 2018, com a aprovação em Santa Catarina da primeira legislação estadual no Brasil regulamentando o uso da Areia Descartada de Fundição (ADF) em diversas aplicações na construção civil, outros estados e municípios seguiram o exemplo. Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul também estabeleceram regulamentos para o uso da ADF, cada um com suas particularidades e requisitos específicos.

1.3. Aplicações Práticas da ADF na Construção Civil

As aplicações potenciais da ADF na construção civil são variadas e incluem:

  • Utilização em concreto asfáltico para pavimentação de estradas.
  • Fabricação de blocos de concreto e argamassas.
  • Produção de materiais cerâmicos como telhas e tijolos.
  • Uso em camadas de base e sub-base para obras rodoviárias e de infraestrutura.
  • Emprego como material de cobertura em aterros sanitários.

2.  MATERIAIS E MÉTODOS

A utilização da amostra na forma de areia é considerada conservadora, uma vez que é plausível o fato de que nas aplicações propostas ocorra a redução da disponibilidade química dos componentes da ADF em comparação com a areia, devido à agregação de partículas e impedimento físico que interferem na cinética de percolação, de dissolução e no rendimento da extração de constituintes das peças e camadas específicas (DUNGAN e DEES, 2006).

A amostra de ADF, proveniente de uma fundição da região de Joinville, foi caracterizada de acordo com a Norma ABNT 10004:2004. Também foram utilizados resultados das análises de um estudo Analítico Ambiental de Qualidade das Águas Subterrâneas de um Trecho Experimental da Rede de Esgoto Sanitário de Joinville, referente ao ensaio piloto de aplicação da ADF (areia de moldagem) na construção das camadas de recobrimento e assentamento de tubulação coletora de esgoto sanitário. Este trecho foi monitorado entre os anos de 2011 e 2012, com a realização de coletas da água subterrânea a cada seis meses e durante este período não foram detectados componentes químicos provenientes da ADF nas amostras de água.

Considerando o potencial de periculosidade da ADF e as informações sobre os limites toxicológicos propostos na Lei SC 17.479/2018 que considera se a ADF apresentar toxicidade (FT) maior que 8, no caso de utilização diretamente em solo e FT maior que 16 para demais utilizações, foram avaliados os potenciais riscos dos cenários de uso propostos.

Foram avaliados os potenciais cenários de exposição, considerando as características da ADF e as variáveis de utilização e limites ecotoxicológicos adotados por agências nacionais e internacionais (BOSSILKOV e LUND, 2008; FHWA, 2000; USEPA, 2002a, Lei SC 17.479/2018).

O modelo conceitual considerado na avaliação é apresentado na representação esquemática da Figura 1.

                                  

Figura 1. Representação esquemática do modelo conceitual considerado no estudo. Fonte: A autora, 2024.

 

3.  RESULTADOS      

1) Avaliação dos Perigos à Saúde Humana

 

2) Composição e Classificação de Perigo

A ADF é primariamente composta por areia base, incluindo substancialmente Bentonita (um material argiloso) e um ligante de Pó de Carvão Mineral. Sua composição elementar inclui 76,91% de SiO2, 9,49% de Al2O3, 3,43% Fe2O3, 0,80% de TiO2, de 0,96% CaO, 0,97% de MgO, 1,06% de K2O, 0,02% de MnO, 72% de Na2O, 0,54% de P2O5, 1,51% de SO3, 0,36% de Cl, 0,16% de Sr, 0,11 % de Ba, e 0,03% de Zr), (CARNIN, 2008).

 

A análise da amostra de ADF identificou-a como Resíduo Classe II A – Resíduo Não Inerte, com componentes orgânicos e inorgânicos mantendo-se abaixo dos limites de concentração determinados pela NBR ABNT 10004:2004. Os resultados indicam uma baixa mobilidade e disponibilidade química dos constituintes do resíduo em lixiviado (Tabela 1).

Tabela 1. Ensaio de Lixiviação/Solubilizado da ADF (TASQA, 2011).

Parâmetros

Lixiviado (mg/L)

Solubilizado (mg/L)

 

NBR 10005

NBR 10006

 

Resultado

LQ

VMP

Resultado

LQ

VMP

Alumínio

NE*

35,3

0,05

0,2

Arsênio

< LQ

0,04

1

0,004

0,001

0,01

Bário

0,72

0,005

70

2,56

0,005

0,7

Cadmio

< LQ

0,003

0,5

< LQ

0,003

0,005

Chumbo

< LQ

0,03

1

0,002

0,002

0,01

Cloretos

NE*

15,5

0,01

250

Cobre

NE*

0,22

0,003

2

Cromo

0,004

0,002

5

0,03

0,002

0,05

Fenóis Totais

NE*

2,21

0,05

0,01

Ferro

NE*

13,9

0,002

0,3

Manganês

NE*

0,13

0,002

0,1

Mercúrio

< LQ

0,0005

0,1

< LQ

0,0005

0,001

Prata

< LQ

0,003

5

< LQ

0,003

0,05

Selênio

< LQ

0,05

1

< LQ

0,002

0,01

Sódio

NE*

96,2

0,05

200

Zinco

NE*

0,67

0,006

5

NE* = Não exigido no ensaio de lixiviação.

A análise da amostra de ADF identificou-a como Resíduo Classe II A – Resíduo Não Inerte, com componentes orgânicos e inorgânicos mantendo-se abaixo dos limites de concentração determinados pela ABNT NBR 10004:2004. Os resultados indicam uma baixa mobilidade e disponibilidade química dos constituintes do resíduo em lixiviado (Tabela 1).

3) Avaliação da Concentração Excedente de Fenol

O fenol, um composto amplamente presente no ambiente, pode originar-se tanto de fontes naturais quanto antropogênicas, incluindo emissões de veículos, uso de produtos de consumo, queima de carvão, e operações em refinarias de petróleo (ATSDR, 2011; USEPA, 2009). Absorvível pelas vias oral, dérmica e inalatória, altas concentrações de fenol podem causar irritações severas e efeitos agudos locais, como inflamações e arritmias, além de toxicidades renal e hepática e impactos neurológicos em contextos de alta exposição (ATSDR, 2011). Não classificado como carcinogênico para humanos, o fenol tem uma meia-vida curta no ambiente, não apresentando potencial bioacumulativo significativo (IARC, 2013; USEPA, 2009).

A USEPA estabeleceu limites ecotoxicológicos seguros para a exposição ao fenol, com valores como 19 mg/m3 na atmosfera para exposição ocupacional diária de 8 horas (ACGIH, 2011; OSHA, 2013) e uma Dose de Referência (DRf) de 0,3 mg/kg/dia, levando em conta as incertezas dos estudos toxicológicos e variabilidade interespécies (USEPA, 2013).

Tabela 2. Limites de Concentração de Fenol em Água Potável Considerados como Seguros pela USEPA (2012).

Limite/ Valor orientador

Concentração (mg/L)

One-day

6,0

Ten-day

6,0

DWEL

11

Life-time

2

One-day: Limite de concentração considerado para exposição durante 1(um) dia (criança de 10kg);

Ten-Day: Limite de concentração considerado para exposição durante 10(dez) dias (criança de 10kg);

DWEL (Drinking Water Equivalent Level): Nível de exposição durante o período de vida, assumindo 100% de exposição a partir de um dado meio, no qual não são esperados efeitos adversos à saúde;

Life-time: Limite de concentração considerado para exposição durante toda vida (indivíduo de 70kg).

4.  DISCUSSÃO

As análises indicam que a ADF, como um resíduo Classe II A – Resíduo Não Perigoso, não apresenta riscos significativos à saúde ou ao ambiente nos cenários propostos para sua aplicação na construção civil. Os procedimentos estabelecidos pelos órgãos ambientais confirmam a segurança do uso da ADF, mitigando riscos através de um plano rigoroso de amostragem e análises.

5.  CONCLUSÃO

O manejo adequado dos resíduos industriais emergiu como um desafio ambiental de escala global. As vastas áreas requeridas e os elevados custos associados à disposição final tornam imperativa a utilização desses resíduos como matérias-primas alternativas. Especificamente, a disposição da Areia Descartada de Fundição (ADF) em aterros industriais não só implica custos altos, mas também resulta em um desperdício de recursos que poderiam ser empregados na construção civil, como na fabricação de componentes para concreto, camadas de base e sub-base e como na construção de camadas para o assentamento de tubulação sanitária. Essas aplicações não só proporcionam benefícios econômicos, como também contribuem para tornar as fundições mais sustentáveis e para a redução das emissões de gases de efeito estufa.

No entanto, percebe-se que as iniciativas para o aproveitamento da ADF tendem a ser isoladas e frequentemente não avançam por falta de conhecimento dos possíveis usuários da construção civil. Além disso, a escassez de informações técnicas disponíveis para apoiar as decisões desses órgãos é um dos principais obstáculos que impedem a aceleração do uso da ADF.

Em geral, a ADF é classificada como um resíduo não perigoso e não apresenta ecotoxicidade aguda e crônica, tanto no Brasil (Classe II-A, segundo a ABNT NBR 10.004/2004) quanto nos Estados Unidos. Contudo, apesar dos resultados positivos para o seu uso na construção civil, a ADF é frequentemente destinada a aterros industriais, em vez de ser utilizada de maneira eficaz.

Uma das formas de promover o uso eficiente da ADF é por meio da realização de projetos que incentivem a economia circular. Em Santa Catarina, por exemplo, a execução de obras de infraestrutura em três grandes empreendimentos ilustra as vantagens de integrar a ADF de maneira segura e responsável na construção civil. Estes projetos não apenas cumpriram com todas as regulamentações de segurança e ambientais, mas também demonstraram como a ADF pode ser utilizada efetivamente, substituindo materiais convencionais e reduzindo os custos de produção e impacto ambiental.

Os casos de sucesso em Santa Catarina incluem a utilização da ADF em grandes obras de infraestrutura, como a construção de um aeroporto privado. Estes projetos servem como modelos para outros estados e regiões, mostrando que, com o planejamento adequado e o apoio das políticas públicas certas, é possível transformar um resíduo industrial em um recurso valioso para o desenvolvimento sustentável.

Assim, a implementação dessas práticas não só ajuda a transformar os desafios ambientais em oportunidades econômicas e de inovação, mas também fortalece o compromisso com o desenvolvimento sustentável, beneficiando tanto o meio ambiente quanto a economia local e nacional.

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